6 de novembro de 2008

sobre literatura confessional

Expor declaradamente segredos, assuntos íntimos, sofrimentos pessoais, etc, é exatamente o oposto da literatura. Tal declaração está certíssima, com alguns limites. Quer dizer que literatura confessional é um contrasenso, mas:

1) não quer dizer que confissões em geral não sejam louváveis (quando muitas vezes são interessantíssimas, e talvez o motivo de escritores tão bons manterem diários ou amigos a quem confessar seja justamente para separar aquilo que não deve se misturar);
2) não quer dizer que confissões inventadas/teatralizadas não possam ser revestidas com o manto da Senhora Habilidade e da Princesa Contenção e transformadas em arte.

Primeiro (acabei de ver que esse post vai ser longo, uau) porque falar declaradamente sobre as próprias mazelas não ajuda a resolvê-las - e se ajudasse, também se anularia, pois autorizaria que a literatura é algo que existe para se ajudar, o que é complicado. Um bom exemplo disso é Clarice Lispector, a maior escritora de auto-ajuda brasileira, lida e relida pela juventude-nossa-de-cada-dia querendo se encontrar, etc. A crítica é fácil e coerente - primeiro porque a própria escritora se dizia amadora (o que na verdade está dizendo é "vou bater minha cabeça na parede e depois dar umas piruetas - não me encham o saco") e depois porque ela própria encarnava fielmente todas as suas personagens sofridas e confessionais em entrevistas, cartas, fotografias. Se, no entanto, vejo todas suas personagens (e a própria autora) como uma única personagem meio possessa e dissimulada escondida dentro de um Grande Romance, passo a gostar de alguns de seus livros.

Eu próprio, que também já tive meus 14 e 15 anos, já cometi alguns deslizes dessa natureza, quando conheci a obra da Sylvia Plath. Julguei errado provavelmente porque era mulher e não mulherzinha como Clarice Lispector, embora sempre estivesse perdida em comentários feitos por mulherzinhas e meio misturada em citações sobre as mesmas. Ler a obra poética de Sylvia Plath como uma menina de 15 anos lê Clarice Lispector - o que é normalmente feito - não é apenas errado, é um vexame (desconfio seriamente que Sylvia suicidou-se não por causa de seus problemas pessoais, mas porque sabia a natureza dos fãs que iria ter). Se existe tom confessional e presença de dados sofridos da escritora - e, sim, existem muitos -, está tudo contaminado de técnica, simplicidade e distanciamento que poderiam ser informações inventadas por um outro - em algum nível, são inventadas. Ainda, afasta-se do conceito de "confessional" porque não é feito para buscar ajuda para a autora, o perdão (nem que seja vindo de si própria) pouco importa. No entanto, à época, foi necessário a mim ler as 800 e poucas páginas de seus diários para concluir que sua crueldade não vinha do fato de que sofreu muito e que queria falar desse sofrimento, de que estava se rendendo, blablabla, mas porque passava horas aristotélicas por dia sentada enquanto reescrevia centenas de vezes seus poemas de modo a parecer o mais cruel e simples o possível - o que conseguiu com Ariel, um livro póstumo.

O que eu concluo, além disso, é que o confessionalismo puro é uma medida tão impossível quanto o realismo puro ou mesmo o autobiografismo puro. Justamente porque querem falar de coisas sem ficcionalizá-las, sem refiná-las - querem falar de coisas. Isso pode ser de interesse de psicólogos e antropólogos, não da literatura. Aqui estamos falando de estilo, e a única possibilidade do "confessional" ser inserido é dentro de uma perspectiva estilística. O problema dos escritores que querem fazer literatura confessional é achar que estão se entregando, que estão fruindo, vingando e que depois tudo vai passar. Se um escritor de literatura quer ter um mínimo tom confessional na sua escrita e ser bom (o que não inclui os gênios), é preciso se afastar quilômetros dessa concepção, ou vai parecer uma barata tonta.

O que eu quero dizer, para concluir, é que: se for para ler Sylvia Plath, ler ao menos como ela gostaria de ser lida - não como uma pouco gentil avalanche de sentimentos femininos, mas como um exercício técnico, um refinamento de estilo que pouco parece sequer humano. Ou vocês concebem conhecer a mulher por trás da cortina: "I have your head on my wall. / Navel cords, blue-red and lucent, / Shriek from my belly like arrows, and these I ride."? Quanto à Clarice Lispector, não aconselho nada, só estou dando direcionamentos para você, mocinha de 15 anos - que sente demais, para quem a vida é demais - ampliar o horizonte de leitura. Infelizmente, isso é em vão, pois a mocinha imediatamente veste sem saber a persona clariciana a me responder "Tenho uma grande vida, sou livre e mágica como uma fada, não vou lhe ouvir!" antes que eu me esconda e fuja pela saída de emergência.

8 comentários:

agente laranja disse...

Concordo e discordo, porque "técnica" também é um conceito perigoso, com toda essa idéia de poesia laboral, ou te gustas Olavo Bilac?

agente laranja disse...

(obs.: sim, confissão é uma necessidade, literatura é uma outra. vez ou outra, elas se oferecem referências que ajudam a clarificar. é por isso que pessoas bem confessoras adoram ler)

júlia disse...

essa questão da confissão ou da não-confissão tá no centro de tudo. a gente precisa primeiro pensar, acho, que a palavra confissão tem algo de muito cristão, o confessionário, a culpa, expiá-la, não pela oração, mas pelo poema.

de todo modo, qualquer bom escritor tem técnica e não só, fale dele ou do que falar. mais do que tudo, acho que a plath e a clarice tem um ponto com a experiência, que é com uma experiência fora do jargão. daí se caí na idéia do nível íntimo, de visão de mundo, de colocação de um sujeito na matéria. mas? tem muito mais que isso.

eu já pensei que a plath se matou pela vontade de concentração absurda que ela promove.

mas e agora, não pode faltar, vamos falar de ana cristina césar também?

júlia disse...

e, além disso, acho desnecessário (além de em alguns registros machista) tentar poupar a clarice, a plath, a ana cristina de terem feito literatura de mulherzinha mesmo. e se for, e daí?

eu gosto é mais de inverter o termo. pegar, sei lá, um joão cabral e dizer: AI GENTE QUE CABRA MACHO!

Luciano disse...

Olá, Júlia, seja-bem vinda por aqui. ^^ Já li algumas coisas da Ana Cristina César e achei fraquinho. Não sei, tive a impressão de que ela não usava desodorante.

júlia disse...

olá, luigi, prazer. ana cristina césar, fraquinho? acho que você precisa comer neston. ; )

bacci

Anônimo disse...

Mto bom o post!

Luciano disse...

Obrigado, sand ^^