31 de março de 2010

a delícia da tirania, agora com as baterias reguladas

1. Hoje eu acordei pontualmente às 7, com dois duendes puxando as minhas orelhas, um de cada lado. Eles brincavam de "quem é o gostosão, quem é o gostosão" com as minhas orelhas e, por isso, fui obrigado a acordar tão cedo. Alas!, pensei, pois era o único dia em que eu não tinha aula na faculdade.

2. Avaliando o passado: eu tinha 15 blogues favoritos aos 15 anos. Desses, hoje em dia, desprezo 10, 2 não apenas ainda me impressionam como me fazem querer desistir de escrever de tão bons que continuam sendo, e os outros 3 perdi o link. Normal.

3. Quando um post meu é totalmente aceito, sinto como tivesse sido enrabado por uma dúzia de homens.

4. Toda sinceridade é uma intolerância. Não há liberais sinceros. De resto, não há liberais. (Bernardo Soares)

5. Eu evito me aproximar de quem é imensamente indiferente ou imensamente piedoso, porque, em vez de indiferença ou piedade, me parece que os indiferentes e piedosos estão me ensinando "Como transformar pessoas em frangos prontos para o abate em 5 minutos". Penso com meus botões, não existe nada mais cínico e destrutivo que o desinteresse ou a dó. Isso me impede de ser cristão, mas me permite estar sempre bronzeado, com cabelos macios e com um sorriso compassivo no rosto.

6. Por esse motivo, Joan Crawford merece apanhar em todas as cenas de Whatever happened to Baby Jane, o que não a torna menos interessante ou menos madrinha deste blog.

7. A explicação para o que acontece na Cena 2, Ato III provavelmente está na cena anterior, Ato I ou aparecerá nalguma cena seguinte, ou na última cena, Ato Final, o que causará o espanto e o horror da platéia.

8. Eu não quero casar por outro motivo que não seja para ter problemas conjugais: escândalos em restaurantes, sexo enraivecido, rancores para a vida inteira, solidão pós-guerra. Cada um com seu fetiche.

9. Todas as pessoas que conheço, e especialmente todas as que respeito, estão à beira do excesso, mesmo que de forma educada.

10. Eu não gosto de pessoas que são frígidas ou calorosas demais, ou que o são nos momentos errados, seja lá qual seja a "hora de ser frígido" ou "a hora de ser caloroso".

11. Todo mundo gosta de bater, todo mundo gosta de apanhar. Let's face it, Carrie Bradshaw!

12. O culto à fleuma britânica formou uma legião de imbecis e meia dúzia de gênios. Assim como todo o resto.

13. Novo Cinema Alemão: gosto da demência dos personagens do Herzog. Cada um com seu fetiche.

14. O estoicismo de Sêneca quer nos preparar para a desgraça em vez de nos ensinar como se divertir com a desgraça, o que paradoxalmente era algo que romanos faziam bem.

15. Além disso, o culto à indiferença me impede de ser estóico. Ou brinca comigo de cachorro-pega-gato ou vai para a guilhotina.

16. Todos os meus epítetos começam com a letra M: Minotauro, Mata Hari, Madame Bovary.

17. Escrevemos com mais prazer quando estamos rancorosos, mas normalmente o resultado é catastrófico. Um problema sem solução.

18. "Todo mundo é ex-alguma coisa" (Joana Prado, ex-Feiticeira)

19. Ser chique é ser, ao mesmo tempo, carregado metafisicamente e bem-vestido desinteressadamente. Aprenda com Zurlini.

20. Não conheço um leonino interessante.

21. Não conheço um médico sensato.

22. Quando leio algo que me impressiona, não mostro para ninguém.

23. Todas as vinganças valem a pena, se não pelas razões que lhes deram origem, ao menos pelo próprio prazer da vingança.

24. Todo mundo gosta quando Afrodite é ferida na Ilíada por ter se metido na guerra. Todo mundo fica feliz quando Zeus lhe diz "Fica na tua, mulher, e vai pra panela."

25. Sempre preferi arrancar o cabelo alheio para demonstrar afeto do que apelar à pompa dos carinhos e elogios rasgados. Mas prefiro que me acariciem e me elogiem do que tentem puxar meu cabelo. Mentira.

26. Tenho 17 contas de emails, todas com senhas diferentes e não sei o que fazer com isso.

27. O prazer da ambiguidade é saber que, por mais fantasioso ou impessoal que seja o que você escreva num blog, alguém sempre vai se sentir pessoalmente atacado.

28. Outro dia vi no jornal: "Assassinatos estão acima da média normal". O que é uma média normal de assassinatos? Quantas pessoas precisam morrer por dia para que a média seja atingida? Isso é interessante.

29. Vingar-se de alguém por medidas desinteressadas (sem sangue) nos torna pouco nobres, mas também nos torna mais irritantes.

30. A leveza nos distrai, a gravidade nos arrebata. Mas não se enganem: essas categorias às vezes vem disfarçadas uma da outra.

31. Quase escrevi "gravidez" no lugar de "gravidade".

32. I will always love Monty.

24 de março de 2010

quel joli temps pour se dire au revoir, quel joli temps pour jouer ses vingt ans

As musas são entidades belas e queridas e eternas. Por nós, mortais, elas fazem duas coisas também belas e queridas e eternas: iludem-nos com mentiras convincentes ou nos mostram profeticamente a verdade. Eis a diferença bela e querida e eterna entre retores e românticos.

*

Eu sou um romântico, mas já fui um retor. Antes de ser um retor, eu já fui um romântico. Isso é verdade, eu não estou tentando convencer ninguém! Me deixem em paz!

*

Platão, como eu, também era um romântico. Ele só tentou dessacralizar a poesia - aka as artes em geral -, transformando-a numa técnica de representação (e portanto numa "ilusão de mentiras convincentes"), porque na Grécia Antiga não havia barbeadores elétricos e ele estava com uma micose desconfortável no queixo. Para se vingar do mundo sensível, transformou a poesia numa técnica mundana, numa pintura, num artesanato, num ornamento conveniente de formas. Mas, à noite, em seu quarto, ele chorava.

A micose no queixo de Platão foi, assim, responsável por tudo o que o mundo foi, até o romantismo.

*

Num mundo como o nosso, onde os cabeleireiros estão sempre com filas imensas e os estacionamentos dos shoppings estão sempre lotados, é difícil assimilar qual é a nossa sinceridade, e acabamos imitando a sinceridade dos outros.

Por conta das filas dos cabeleireiros e dos estacionamentos dos shoppings, concluimos que a sinceridade dos outros é, então, tão falsa quanto a nossa e acabamos não acreditando na sinceridade de ninguém. Concluímos que todo romantismo é fingido, dissimulado, fruto de uma solidão forçada ou vulgar, etc.

*

Além da micose no queixo de Platão, da fascinação cega pela retórica, das filas dos cabeleireiros e dos estacionamentos dos shoppings, há ainda um outro problema para nós, românticos: o argumento de que o romantismo é uma preguiça de desenvolver habilidades potencialmente artísticas, de imitar-emular as próprias influências e uma desculpa esfarrapada para usar entorpecentes.

*

Contra todos esses fortes argumentos, parece que não há no mundo espaço para a sinceridade de ninguém e os profetas de nosso tempo, digamos um Tarkovsky, são tomados como lunáticos ou servem para enfeitar o pedestal de adolescentes revoltosos e transgressores. "Adolescentes revoltosos e transgressores", aliás, vira uma espécie de jargão romântico. Falemos um pouco sobre essa espécie.

*

Um garoto de quinze anos assiste pela primeira vez a Noites de Cabíria. Quando acaba, fica desconcertado, porque se viu pela primeira vez diante de uma verdade real, e faz verbalizações ridículas a respeito. Ninguém o leva a sério, como é natural.

O mesmo garoto, aos dezessete, já viu todo o neo-realismo italiano, já se interessou por prosa americana, filosofia analítica, dramaturgia e já começou seus estudos em teoria poética clássica.

Inexplicavelmente, um belo dia, nosso garoto, depois de tomar três xícaras de chocolate quente sem queimar a língua, faz algumas conclusões sobre seus estudos e interesses: (1) eles lhe deram prazer, que é o motivo principal; (2) eles o tornaram mais observador e crítico; (3) eles o tornaram mais convincente; (4) eles massacraram o adolescente revoltoso e transgressor que o tinha levado a assistir a Noites de Cabíria.

Nosso garoto, agora um homem, então, baixa o torrent de Noites de Cabíria e revê o filme numa madrugada chuvosa de terça-feira. Em seguida, deleta o seu blog, escreve emails para algumas três pessoas, derrama o resto do chocolate quente sobre o rascunho de sua dissertação de mestrado e volta para sua cidade natal.

22 de março de 2010

20 de março de 2010

Backward I see in my own days where I sweated through fog with linguists and contenders, / I have no mockings or arguments, I witness and wait

Por um pouco de frescor para esse sábado estupendo e para comemorar o delicioso equinócio de outono (ou de primavera. Olá, amigotes do hemisfério norte), que acontece hoje no fim da tarde, um trechinho da Song of Myself:

(...)
Trippers and askers surround me,
People I meet, the effect upon me of my early life or the ward and city I live in, or the nation,
The latest dates, discoveries, inventions, societies, authors old and new,
My dinner, dress, associates, looks, compliments, dues,
The real or fancied indifference of some man or woman I love,
The sickness of one of my folks or of myself, or ill-doing or loss or lack of money, or depressions or exaltations,
Battles, the horrors of fratricidal war, the fever of doubtful news, the fitful events;
These come to me days and nights and go from me again,
But they are not the Me myself.

Apart from the pulling and hauling stands what I am,
Stands amused, complacent, compassionating, idle, unitary,
Looks down, is erect, or bends an arm on an impalpable certain rest,
Looking with side-curved head curious what will come next,
Both in and out of the game and watching and wondering at it.

Backward I see in my own days where I sweated through fog with linguists and contenders,
I have no mockings or arguments, I witness and wait.
(...)

(Walt Whitman)

17 de março de 2010

a delícia de ser leviano

Uma das coisas que eu mais gosto de fazer é de inventar datas e dados obviamente mentirosos, de fazer comparações claramente forçadas e de desenvolver raciocínios que eu já sei que estão errados durante o ato de composição. Poucas coisas me dão tanto prazer quanto fazer generalizações fantasiosas, exageradas, de usar exemplos específicos para dar consistência a uma argumentação geral e portanto falível. Mas eu não faço isso gratuitamente. Eu faço isso porque todos que se apoiam no próprio potencial lógico-analítico para ver o mundo fazem, alguns de forma convincente e outros nem tanto, porque não há outra forma de subjugar a argumentação alheia sem ser através desses jogos - claramente percebemos quando o outro está fragilizado e impressionado com as nossas mentiras; sentimos que acabamos de roubar-lhe algumas moedas. Sem querer percebemos que isso acaba formando um enorme grupo de mentirosos, presos à própria retórica como a uma religião, uma secreta seita de farsantes a ponto de serem descobertos. Mas se fazemos isso tão comumente, se praticamente não sabemos pensar de outra forma e desconfiamos com certo escárnio de qualquer outra forma de pensamento, talvez haja um motivo que exceda o prazer dos jogos, talvez todas essas construções lógicas escondam uma obsessão misteriosa, quem sabe o nosso próprio rosto, o rosto comum dos homens, um desenho grosseiro do rosto de Deus.

16 de março de 2010

alguns poemas ou fragmentos que não têm nenhuma relação entre si exceto o fato de que me apeteceu postá-los

Se passei dos cinqüenta e das três da manhã
queimando maço atrás de maço; se me agarro
desamparadamente ao último cigarro
como Adão à serpente; se me tortura a vã
obsessão da queda, o sabor da maçã,
e ainda assim insisto em modular meu barro
e fazer dele a gaita, ou a flauta de outro Pã;
se largo tudo enfim e abro a janela e escarro
entre a vaidade, a noite e o carro do vizinho,
será talvez por isso mesmo: porque creio
que tudo vai passar, mas o canto sozinho,
se conseguir abrir a escuridão ao meio,
há de salvar-me! O canto... Esse meu velho espinho
sempre me fez sangrar, nunca disse a que veio.

(Bruno Tolentino)

-

Nunca entendi que o coração sofresse
como sofre por causa do ilusório,
que fizesse de si um consistório
de fantasmas inúteis, e que nesse

fundo de calabouço se metesse
tanto remorso, tanto mais inglório
quanto nunca serviu: que padecesse
porque entulhasse um fictício empório

com suas ficções e seus delírios.
O tigre mata à toa, o coração,
fabricando e alongando seus martírios,

estraçalhando-se a si mesmo em vão,
imita a fera absurda e, como os tiros
na noite, morre só, na escuridão.

(Bruno Tolentino)

-

You came in out of the night
And there were flowers in your hand,
Now you will come out of a confusion of people,
Out of a turmoil of speech about you.

I who have seen you amid the primal things
Was angry when they spoke your name
In ordinary places.
I would that the cool waves might flow over my mind,
And that the world should dry as a dead leaf,
Or as a dandelion see-pod and be swept away,
So that I might find you again,
Alone.

(Pound)

-

(...)
Duermen del otro lado de las puertas
aquellos que por obra de los sueños
son en la sombra visionários dueños
del vasto ayer y de las cosas muertas.
(...)

(Borges)