24 de março de 2010

quel joli temps pour se dire au revoir, quel joli temps pour jouer ses vingt ans

As musas são entidades belas e queridas e eternas. Por nós, mortais, elas fazem duas coisas também belas e queridas e eternas: iludem-nos com mentiras convincentes ou nos mostram profeticamente a verdade. Eis a diferença bela e querida e eterna entre retores e românticos.

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Eu sou um romântico, mas já fui um retor. Antes de ser um retor, eu já fui um romântico. Isso é verdade, eu não estou tentando convencer ninguém! Me deixem em paz!

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Platão, como eu, também era um romântico. Ele só tentou dessacralizar a poesia - aka as artes em geral -, transformando-a numa técnica de representação (e portanto numa "ilusão de mentiras convincentes"), porque na Grécia Antiga não havia barbeadores elétricos e ele estava com uma micose desconfortável no queixo. Para se vingar do mundo sensível, transformou a poesia numa técnica mundana, numa pintura, num artesanato, num ornamento conveniente de formas. Mas, à noite, em seu quarto, ele chorava.

A micose no queixo de Platão foi, assim, responsável por tudo o que o mundo foi, até o romantismo.

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Num mundo como o nosso, onde os cabeleireiros estão sempre com filas imensas e os estacionamentos dos shoppings estão sempre lotados, é difícil assimilar qual é a nossa sinceridade, e acabamos imitando a sinceridade dos outros.

Por conta das filas dos cabeleireiros e dos estacionamentos dos shoppings, concluimos que a sinceridade dos outros é, então, tão falsa quanto a nossa e acabamos não acreditando na sinceridade de ninguém. Concluímos que todo romantismo é fingido, dissimulado, fruto de uma solidão forçada ou vulgar, etc.

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Além da micose no queixo de Platão, da fascinação cega pela retórica, das filas dos cabeleireiros e dos estacionamentos dos shoppings, há ainda um outro problema para nós, românticos: o argumento de que o romantismo é uma preguiça de desenvolver habilidades potencialmente artísticas, de imitar-emular as próprias influências e uma desculpa esfarrapada para usar entorpecentes.

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Contra todos esses fortes argumentos, parece que não há no mundo espaço para a sinceridade de ninguém e os profetas de nosso tempo, digamos um Tarkovsky, são tomados como lunáticos ou servem para enfeitar o pedestal de adolescentes revoltosos e transgressores. "Adolescentes revoltosos e transgressores", aliás, vira uma espécie de jargão romântico. Falemos um pouco sobre essa espécie.

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Um garoto de quinze anos assiste pela primeira vez a Noites de Cabíria. Quando acaba, fica desconcertado, porque se viu pela primeira vez diante de uma verdade real, e faz verbalizações ridículas a respeito. Ninguém o leva a sério, como é natural.

O mesmo garoto, aos dezessete, já viu todo o neo-realismo italiano, já se interessou por prosa americana, filosofia analítica, dramaturgia e já começou seus estudos em teoria poética clássica.

Inexplicavelmente, um belo dia, nosso garoto, depois de tomar três xícaras de chocolate quente sem queimar a língua, faz algumas conclusões sobre seus estudos e interesses: (1) eles lhe deram prazer, que é o motivo principal; (2) eles o tornaram mais observador e crítico; (3) eles o tornaram mais convincente; (4) eles massacraram o adolescente revoltoso e transgressor que o tinha levado a assistir a Noites de Cabíria.

Nosso garoto, agora um homem, então, baixa o torrent de Noites de Cabíria e revê o filme numa madrugada chuvosa de terça-feira. Em seguida, deleta o seu blog, escreve emails para algumas três pessoas, derrama o resto do chocolate quente sobre o rascunho de sua dissertação de mestrado e volta para sua cidade natal.

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