23 de junho de 2008

das afetações

assumir o gosto por algum texto de literatura é necessariamente assumir todas as afetações que aquele texto trás, e normalmente trás. por exemplo. se alguém chega pra mim dizendo que gosta de Lima Barreto, imagino logo um espírito meio marginal, meio jornalista frustrado, etc. se alguém chega pra mim dizendo que gosta de A Morte de Ivan Ilitch, imagino logo que se trata de alguém rancoro demais, barulhentinho demais, com alguma dificuldade de fazer uma dancinha no final de tudo, ou sempre tendendo pro lado do "o mundo e as pessoas são terríveis!", esse papinho provavelmente fruto de algum mimo que não foi concedido. muitas vezes, nem sabemos ainda que assumimos essa afetação, e quando descobrimos rejeitamos o gosto por aquele livro ou autor. ou melhor, rejeitamos publicamente.* e é bom que seja assim mesmo. não quero ver meus amigos colocando A Morte de Ivan Ilitch em maiúsculas no orkut. se quiserem gostar de A Morte de Ivan Ilitch, que o façam de forma ponderada, com o livro entre vários outros, uma leitura a mais. porém, se você se identifica demais com a afetação do livro, pode ser difícil disfarçar. mas é bom tentar, por uma questão de gentileza. não existe nada menos gentil que sair gritando as próprias afetações pelo mundo. todo mundo possui afetações, como possui qualquer outra coisa (sapatos, escova de dente, um panda de porcelana) e nem por isso saímos colocando fotos de tudo isso na testa.

* às vezes passamos anos para encontrar a afetação que estava escondida num texto. muitas vezes, inclusive, a qualidade de um texto é proporcional à capacidade de esconder suas afetações, de modo que passamos um tempão achando que gostamos do estilo, do ritmo, do humor (ou da falta de humor), até descobrir que essas coisas todas eram meros artifícios para nos enganar (ou que das quais nos apropriamos para nos mascarar). alguns nem percebem esse processo todo. e é uma maravilha tudo isso. e ainda bem que fomos enganados, e que continuamos sendo enganados por todos esses livros de que gostamos.

3 comentários:

Anônimo disse...

não não não

agente laranja disse...

Vou começar a esconder o Oscar.

Luciano disse...

Ah, Oscar Wilde não entra nesse mérito, né. seria até de bom gosto que o mundo berrasse sua afeição por ele. seria talvez o único caso em que não soaria deselegante, já que Wilde é, né, a elegância.